Contrariando a muitos, vou dizer que a felicidade mora numa garrafa de
bebida, num disco velho de rock, e na conversa com um amigo que lhe faz
companhia quando você tanto precisa. Coisas simples, e que deveriam ser
acessíveis sempre, mas que infelizmente estão se tornando raras em
minha vida. Não peço que o diabo me leve ao teto de um templo e me
prometa o mundo. Não preciso do carro do ano, de muito dinheiro no
bolso, ou comer a garota mais bonita que aparecer na minha frente.
Preciso apenas de alguns momentos que justifiquem a minha existência,
que façam a vida valer a pena, sorrir mais do que chorar, sentir-se
realizado com o que faz. Mas o que devo fazer quando isso não acontece?
Hoje tive que mover montanhas para sair de casa e encontrar um amigo do
qual eu havia prometido encontrar para treinar. Corpo cansado,
sonolência, mais uma vez aquela vontade de permanecer deitado em algum
canto esperando o tempo passar. Nestes momentos todos os argumentos
parecem lutar inutilmente contra o corpo. Mais um dia torcendo para que
algo aconteça e mude tudo. Mas eu não posso permanecer assim, sei que
preciso lutar de alguma forma. Respirei fundo e lembrei que eu não
decepcionaria apenas meu amigo, mas também o cara que estava me
ensinando tanta coisa em troca apenas do meu respeito, da minha
gratidão e fidelidade. Poucas pessoas compreendem esta relação. Joguei
meu kimono dentro da mochila e segui a pé até a estação de trem. Passos
lentos, sol quente, a mesma paisagem desde a minha infância. Nada
parecia mudar de verdade, exceto pelas novas pichações nos muros, e as
praças cada vez mais sujas e abandonadas, a decadência trazida pela
falta de educação e cidadania de algumas pessoas. Após percorrer duas
estações de trem, e quinze minutos de caminhada, eu chegava finalmente
ao meu destino. Toquei a campainha e fui atendido pelo mestre, tentei
disfarçar inutilmente a minha fisionomia de poucos amigos, conversamos
brevemente e segui até o salão de sua casa, para varrer o chão e
arrumar os tatames. Meu amigo chegou logo depois, e nós três
finalmente nos reunimos para treinar. Foram mais de duas horas de
chutes, quedas, torções e imobilizações. No final de tudo, eu havia
ganhado duas escoriações acima do ombro e um hematoma na canela. Mas
apesar de tudo eu não estava mais triste. De alguma forma meu anjo da
guarda havia feito sua lição de casa. Eu não gozava de plena
felicidade, mas de alguma forma eu sentia um alivio em minha alma.
Alguns demônios haviam ido embora dos meus pensamentos. Como eu poderia
dar atenção a eles nas horas que permaneci no tatame? A preocupação em
aprender era bem maior, não havia espaço para mais nada. Acabado o
treino, troquei o velho kimono suado pela roupa que estava toda
amarrotada no fundo da mochila, e rumei na companhia de meu amigo até a
estação de trem. Paramos no caminho para beber algo, éramos dedicados,
mas de forma alguma éramos santos. Não desejávamos nos embebedar, mas
apenas conversarmos como dois velhos conhecidos. Desta vez foi o
momento da bebida, do rock antigo no rádio do bar, de ouvir, e ser
ouvido. Senti-me vivo em perceber o quanto ele confiava em mim
comentando sobre seus problemas pessoais. Das brigas com alguns
familiares, da falta de grana, do trabalho que tomava a maior parte do
seu tempo, etc. Os velhos problemas de sempre. Após ouvi-lo, falei dos
meus medos. Da crise depressiva que sempre ronda ao meu redor, da
dificuldade em se adaptar com alguns medicamentos, da falta de grana,
de trabalho, etc. As velhas batalhas e os velhos rumos. A tarde acabou
bem. Agradeço a Deus por estar renovado, pelo anjo torto que me segue.
Com certeza eu não me daria bem com um que fosse perfeito.
O amigo é a resposta aos teus desejos. Mas não o procures
para matar o tempo! Procura-o sempre para as horas vivas. Porque ele
deve preencher a tua necessidade, mas não o teu vazio.
Khalil Gibran
Não é amigo aquele que alardeia a amizade: é traficante; a amizade sente-se, não se diz.
Machado de Assis
O uísque é o melhor amigo do homem. É o cachorro engarrafado.
Vinícius de Moraes