domingo, 8 de agosto de 2010

Sinceramente....

Não sou um anjo de candura que estende a mão a todos que necessitam, dentro de mim há sentimentos que são despertos e do qual não me orgulho. Tenho um lado negro cheio de sentimentos negativos aprisionados, mas sou sincero em dizer isso. Aprendi por necessidade da profissão a ouvir sem julgar, ou ao menos não fazer comentários desnecessários, ou faze-los apenas quando existe a necessidade de uma intervenção. Mas se tudo fosse diferente e tal conversa tivesse como cenário um balcão de um bar, ou um banco de uma praça ao invés de um ambulatório psiquiátrico, eu teria o prazer de ao menos uma vez despejar algumas indagações e perguntas nada terapêuticas. Por que não? No cinismo da profissão há tantos maus exemplos vindo daqueles que deveriam ser icones para seus pacientes, só quem trabalha dentro de uma clinica ou um hospital percebe isso claramente. Mas não estou tentando justificar meus sentimentos. Nunca deixei que eles interferissem no meu trabalho, mas vamos lá... Fantasiemos um pouco. Estou sentado num banco de praça com um bipolar na sua quinta internação por má adesão ao tratamento. Por dizer que remédios o dopam, ou que Jesus Cristo esta guiando seu caminho, ou inúmeras desculpas que o afastam de um tratamento efetivo.
Vamos lá... Descasquemos o verbo:

J.P.R de 35 anos, internado por transtorno afetivo bipolar em fase maníaca, com episódios de heteroagressividade e agitação psicomotora. Quinta internação, terceira nesta mesma entidade.
Procedente do Pronto Socorro da Zona Norte para esta instituição acompanhado por familiares.
Os mesmos referem pouca adesão as inúmeras tentativas de tratamento oferecidas, abandono
dos medicamentos, crítica ausente sobre os sintomas e a patologia.

Você não percebe o que está fazendo?
Tem 35 anos e está na quinta internação pelo mesmo motivo.
Não tem consideração pelas pessoas ao seu redor?
Vive apenas para sí mesmo?
Sua filha de 14 anos fala chorando sobre você, e sua mulher nem coloca mais fé nas suas palavras...
Até onde você acha que vai a paciência de alguém?
Dopado? Cara! Você por acaso tem conseguido se controlar sem remédios?
Toda bebida que consome em suas farras não o dopam?
E o baseado que estava no seu bolso no momento da internação?
É incenso? Não o deixa longe da realidade?
A igreja que você vai te curou?
Só psicanálise tá resolvendo o seu problema?
Se você não fosse um filhinho de papai e tivesse que acordar ás 5 horas da manhã para pegar no batente acha que estaria nesta vida de experimentação? De crises em crises?
Compulsivo, dramático, achando que o mundo conspira contra você, enquanto torra a grana da família em bebedeiras, vagando pela noite com amigos que o fazem gastar sem olhar as conseqüências.
Quem você acha que deixou aquelas marcas nos braços da sua esposa?
Por que você não tenta fazer isso com um brutamonte?
Trabalha na empresa de contabilidade do papai, pode tirar licença quando deseja, mas e se fosse diferente?
Vire homem de verdade, assuma o que você tem e cuide-se.
Sua mulher logo vai te colocar um pé na bunda ou te botar um chifre.
Seu pai não vai viver para sempre.
Sua filha esta carente e desamparada e não vai demorar muito para se tornar um adulto inseguro e problemático.
Você tem acesso a médicos caros, internações particulares e a informação que não lhe falta.
Desculpe, mas não tenho dó de você.
Talvez se fosse um marinheiro de primeira viagem, sem informação, necessitando de orientação e todo interessado em retornar a rotina, quem sabe...
Mas já posso ver o seu destino.
Quinze dias de internação para estabilizar-se, volta para casa aparentemente bem, mas logo voltará a beber... Negar a necessidade de tratamento, etc.
Isso tudo até o dia que algo realmente importante acontecer na sua vida.
Quem sabe até lá sua esposa não esteja saindo com alguém que a trata como uma dama, sua filha fumando maconha, dizendo foda-se para o próprio futuro tendo o pai como exemplo.
Mas vou te tratar bem, fazer que sua estadia aqui seja o melhor possível.
Esta é a terceira vez que você passa por aqui.
Na primeira, e segunda vez, eu acreditava a você, mas agora...

Pouca sinceridade é uma coisa perigosa, e muita sinceridade é absolutamente fatal.
Oscar Wilde