segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Lobo Mau

São quatro horas da manhã e o despertador toca. Como um cachorro adestrado a responder por um determinado estímulo, eu começo meus rituais diários. Seria interessante pensar que se esta “sineta” não tivesse tocado meu dia seria completamente diferente. Perco alguns minutos com o café da manhã, tomo um banho rápido, arremesso nas costas a minha mochila e sigo rumo à estação de trem. Ainda é noite, e as ruas estão desertas apesar de ser domingo de carnaval. No meu bairro de periferia não há bares abertos, ou padarias com bebedores comemorando a madrugada. Chego a estação de trem, sem me preocupar se conseguiria um banco vazio para sentar. Poucas pessoas, alguns foliões voltando dos bailes, outros com malas, ou mochilas sugerindo viagens. Parece tudo normal para um feriado prolongado. Da janela do trem vejo o dia amanhecer, no hospital um plantão de doze horas me aguarda. Para alguns isso seria algo inaceitável nesta época do ano. Quarenta e cinco minutos depois, eu desço próximo às imediações do hospital. Ao contrário do meu bairro, vejo pessoas bebendo na porta de alguns bares, padarias abertas atendendo os primeiros clientes. Faço uma oração rápida antes de entrar no trabalho pedindo um dia tranqüilo e sem muitas intercorrências. Mas o dia se arrasta, passa lento... Por baixo do jaleco meu corpo transpira, um dia ensolarado e quente. Entre meus pacientes estão dependentes químicos, depressivos com tentativa de suicídio, bipolares em crise, esquizofrênicos dos mais diversos, psicóticos, e tantos outros com as mais diversas patologias. Mas apesar de tudo, não tenho nenhum problema com eles. Na verdade eu gosto do que faço. Pode parecer difícil, mas se olhar para cada ser humano que está ali, perceberá alguém estendendo uma mão e pedindo ajuda. Alguns já passaram tantas vezes por internações devido a suas patologias, que as famílias sabem que não podem exigir muito do tratamento. Esperam ao menos que estejam estáveis o suficiente, para continuarem o tratamento num outro lugar.  Diferentes pessoas, com diferentes histórias e situações. Não quero perder mais tempo falando sobre isso. É algo muito complexo. Treze horas depois com alguns atrasos e inúmeras intercorrências, estou fora do hospital indo para casa. São mais de oito horas da noite. Domingo de carnaval. Não tenho para quem telefonar, ou para onde ir. É um caminho direto para casa e sem muitas opções. Paro numa padaria, minha mente está muito cansada, minha camiseta colada ao corpo suado, meu calçado novo faz doer um dos meus dedos. Penso uma, duas, três vezes, acho que vou desistir, mas... Faço algo bem atípico, preciso de algo que me faça esquecer algumas coisas, e aceitar outras. Sem muitas opções peço uma cerveja e um copo grande. Não é algo que faço pelo “prazer” de sentir a bebida descendo goela a baixo. Não tento imaginar uma daquelas propagandas onde mostram mulheres deslumbrantes e rapazes malhados com garrafas e latas de cerveja mostrando o quanto são felizes por estarem naquela situação. Não, definitivamente não. Em dez minutos esvazio a garrafa de bebida amarga e pesada como se fosse um remédio para meu tédio e preocupações. Prefiro vinhos, destilados, etc. Na verdade depois que comecei a trabalhar no hospital, passei a não preferir mais nada, apenas em trabalhar e me tratar. Sinto meu corpo leve, minhas preocupações menores. Lembro de meus pacientes dependentes químicos e como eles usam as drogas como mecanismo de alivio, fuga, prazer, etc. A questão vai, além disso, mas por enquanto me detenho a esta explicação. É incrível como a bebida sociabiliza as pessoas. Um desconhecido que estava no mesmo lado do balcão faz um comentário sacana sobre a mulata que aparece em destaque na TV da padaria. Dou uma risada e já consigo um amigo. Logo ele estaria falando sobre a esposa, dando referencias de como é o carnaval em sua cidade natal, etc. Sem poder voltar tarde para casa, sigo o caminho de volta. Novamente pelas mesmas estações de trem, o céu escuro e cheio de estrelas, foliões, pessoas com malas e mochilas nas costas, nada mais do que um cenário repetitivo, mas desta vez com um maior número de pessoas. Duas meninas sentadas a minha frente trocam beijos. Não devem ter mais de 16 anos. Fico admirado pela atitude. “Nos amamos e não nos importamos com que o mundo pense”. Não deixo de admira-las. O álcool da cerveja vai perdendo força. Penso no que mais me aborrece no momento, e apesar de tantas coisas sempre volto à mesma questão:

Minha filha que passou a me detestar desde que a minha ex-mulher me viu com minha primeira namorada “pós-separação”. Nada justo, ela já estava namorando bem antes de mim, mas desde então, minha filha não quis mais colocar os pés na minha casa. Conhecidência? Claro que não!

Faço tudo o que está ao meu alcance para agrada-la, mas vejo uma adolescente se formando com a idéia fixa de que o pai não presta. Acho que só estou escrevendo sobre isso para dizer que a vida segue com suas exigências, provações e pressões. Eu poderia citar outras coisas que fazem parte da minha lista negra. Mas quero parar por aqui. Não há comprimido para isso. Psicoterapia me ajuda muito, mas com a vida corrida que levo não consigo estabelecer horários fixos. Minha escala já mudou três vezes neste início de mês, e não quero fazer grandes exigências no momento. Se devido ao transtorno bipolar somos mais suscetíveis a labilidades de humor, descontroles emocionais, etc. Passo a me preocupar muito sobre a possibilidade da minha lista negra ruir a minha estabilidade. Conversei com uma paciente sobre suja trajetória até a crise maníaca. Procurei saber qual foi o percurso até ali, o que a levou a deixar os medicamentos que estava usando há tanto tempo. Ela disse que estava trocando seu tratamento para algo menos ofensivo para o organismo, pelo menos era nisso que acreditava. No entanto, no meio do caminho, teve seu carro roubado, uma discussão séria com o filho e por fim o afastamento do emprego. Rompeu com a realidade e a crise veio com toda a força. Quem tem medo de lobo mau? Eu tenho. Ele sempre está rondando. Apesar de ter uma arma carregada, o medo permanece.