terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Todos os dias

01:30h – Uma ambulância entra pelos portões do estacionamento do setor de internações de um hospital psiquiátrico. Dentro dela, um motorista, uma enfermeira e um médico da equipe de emergência acompanham uma mãe angustiada ao lado de sua filha que permanece sedada e contida na parte traseira do veiculo. Sem condições de responder as perguntas necessárias para a internação, à médica da instituição tenta obter o máximo de informações possíveis da mãe da paciente que foi chamada as pressas no setor de emergência do aeroporto no qual a filha embarcava para um congresso em Fortaleza. Talvez se fosse possível “ver” a situação pelo ângulo de cada pessoa envolvida nesta cena a coisa seria mais ou menos assim:

Para a equipe de remoção seria mais um trabalho como tantos outros realizados naquela madrugada. Entre vítimas de acidentes de trânsito, emergências psiquiátricas, cardíacas, falsas chamadas, e algumas que não necessitariam da presença de uma equipe especializada, mas que alimentam o banco de dados da central de atendimento e que necessitam ser verificadas.

Para a médica plantonista, talvez seria mais uma paciente internada em crise maníaca necessitando de cuidados imediatos. Uma dentre tantas outras em sua carreira. Ela sabe que tem uma responsabilidade a cumprir e procura fazer isso da maneira mais profissional e humana possível. Provavelmente esta paciente será direcionada a um outro médico no período diurno, mas como médica responsável por aquele plantão, ela tem como prioridade estabilizar a situação e garantir o atendimento necessário naquele momento.

Dizem que sofrimento de mãe é algo indescritível. Não pretendo desmistificar isso, mas posso descrever uma senhora de meia idade com os olhos vermelhos, o rosto cansado, voz rouca e gestos protetores a todo instante. Quem tem um filho sabe que não poderia ser diferente.

Mais tarde lendo o histórico da paciente e conversando por alguns minutos com a mãe, eu soube que seu marido também sofria de transtorno afetivo bipolar. Que este era o primeiro episódio de surto vivido pela filha, e justamente num momento em que ela embarcava para um importante congresso representando a empresa do qual faz parte. O “gatilho” para a fazia maníaca provavelmente teria sido alguns medicamentos usados de forma indiscriminada para emagrecer.

Eu estava numa das alas do hospital conversando com uma paciente insone quando recebi um telefonema da recepção do hospital informando a internação. Solicitei a um outro membro da equipe que me acompanhasse e fomos ao encontro da paciente. Gosto de chegar antes do término da consulta de admissão para avaliar a situação. Alguns pacientes chegam ouvindo vozes, vendo vultos, e distorcendo completamente a realidade. Acreditam estar sendo perseguidos, aprisionados por conspiradores, ou seres de outro planeta. Gritam, agitam, se tornam agressivos e resistentes dificultando a internação.

Num aspecto geral, emergências psiquiátricas são caracterizadas por pacientes que colocam a própria vida em risco, a vida de outras pessoas, ou não tem condições de cuidar de si mesmos.

Embora tivesse recebido uma dose significativa de sedativos a paciente estava muito chorosa, referindo dor onde havia sido aplicada a injeção, roupas sujas, e as faixas de contenção permaneciam amarradas nos seus pulsos e tornozelos. Lentamente a conduzimos até o quarto de observação onde suas roupas foram trocadas e as faixas retiradas. Inquieta e reclamando a todo instante pela presença da mãe, acabou deitando na cama e dormindo quinze minutos depois.

Todas as madrugadas histórias como estas se repetem dentro de um setor de emergência de um hospital psiquiátrico. Algumas vezes até cinco internações numa mesma madrugada. Histórias parecidas ou completamente distintas, pessoas ricas, pobres, intelectualizadas ou com carência de qualquer tipo de orientação básica do que possa ser a sua própria doença. Algumas atribuindo tais patologias ou dependências químicas a espíritos malignos e possessões. Mas o que realmente me impressiona são as internações destinadas a pessoas envolvidas com a área da saúde. Enfermeiros, psiquiatras, terapeutas, estudantes de medicina, psicólogos, etc. Pessoas que deveriam estar aparentemente imunes à ignorância quanto à doença ou transtornos que carregam. Isso realmente me toca. Não me refiro aos sujeitos que mesmo fazendo uso de medicamentos e terapias ficam doentes, mas daqueles que um dia resolveram provar a si mesmos que não necessitavam mais de qualquer tipo de ajuda.

Eu me pergunto todos os dias se estou realmente me cuidando como deveria. Não tenho dúvidas quanto a minha vontade de manter o tratamento.

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns pelo post. E mais parabéns por monitorar todos os dias se está se cuidando adequadamente. Acho que muito importante que as pessoas se informem sobre a realidade das doenças mentais. No caso da mocinha que faria uma apresentação em Fortaleza, espero que esteja bem. Transtorno bipolar do humor é mesmo grave... Quantos prejuízos eu acumulei até um tratamento adequado... Enfim... Que tenhamos boa sorte na caminhada da vida. Will